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Buenos Aires, HORA:ZERO | N. 01

Atualizado: 27 de jul. de 2022


1. No final do conto A dama do cachorrinho, de Tchekhov, um casal de amantes (cuja relação foi contraída ao início da história) não consegue se livrar de seus pares oficiais, o que leva o protagonista, um homem de vida burocrática — em todos os sentidos, chamado Gurov —, na cena derradeira do conto, perplexo diante do amor (ou dos desconfortos do amor), a sentir que seus problemas estão apenas começando. Para além das possíveis interpretações do final aberto, um dos mais célebres da literatura, gosto de ver aí uma metáfora para a escrita (e por que não para a vida): Por mais linhas que escrevamos, nossos problemas estão apenas começando. Mas para além das dificuldades, há a mesma energia presente nas músicas que se iniciam sem sabermos aonde vão nos conduzir, porque o desassossego talvez seja uma condição irrevogável, íntima e necessária, que revela sua razão de ser quando é preciso mudar.

2. Buenos Aires, hora cero é um tango de Piazzolla e dele tiro o nome destas anotações portenhas que hoje começo.

3. Ao longo dos anos, quando visitava esta cidade de livrarias, kioscos e cafés, escutava mentalmente, por alguma razão entre o normal e o lunático, o início desse tango, e me dizia, com uma voz de locutor de antigo noticiário de radio, “Buenos Aires, hora zero”. Concedo o ridículo e o anacrônico de tal voz.

4. Alguma coisa parecida com Em Brasília, dezenove horas.

5. E pela capital federal agora vou, com seus plátanos baldios, suas amplas calçadas — não de todo amplas para desviar das merdas dos perros, dos cambistas e dos vendedores de couro. E depois percorro os bairros mais afastados, os arrabaldes onde a humana estatura das casas permite ver o céu metálico, de um azul que só existe aqui e no Uruguai, não à toa patenteado em suas bandeiras.

6. Ao longo dos anos, a cada viagem na companhia da Tainá, em estadas progressivamente mais longas, vinha-nos a vontade de ficarmos mais tempo por aqui.


7. E viemos. Mas foram precisos quatro meses morando em Buenos Aires, no entanto, para que eu me atravesse a começar a escrever crônicas daqui. Desativar o modo turista e passar a viver como habitante é um processo mais lento do que muitas vezes imaginamos. Há as diferenças naturais de idioma, de modo de vida, de cultura, justo as coisas que tendem a ganhar contornos pitorescos aos olhos de um viajante, mas que precisam ser compreendidas em chave cotidiana por quem fica. O que não significa olhar sem encantamento, sem estranhamento, aliás, como seria bom olharmos para todas as coisas de nossa vida de tempo em tempo. Mas apesar das diferenças, há uma vantagem em sermos latino-americanos: logo reconhecemos as artimanhas e os modos de governo do continente.

8. O slogan da prefeitura de Buenos Aires diz: La transformación no para. Não sei o quanto isso é verdadeiro para a cidade. Há mesmo coisas que precisamos de anos para saber. Mas sei que minha hora zero aqui já ficou para trás, assim como sei que há a cada dia uma hora zero que se renova, como uma música que recomeça, nova e antiga, diferente e a mesma.

9. Quero escrever esta coluna semanal com o vigor e o mistério desse tango de Piazzolla, mesmo que muito ouvido, muito inédito, e dividir com quem lê as impressões da vida buenairense, ancorado numa escrita de cunho pessoal (que foi o que sempre me agradou na crônica) e evocando também os eventos da memória — nossa bagagem, nossas antigas passagens, onde quer que estejamos, em todo o momento em que estamos de fato a recomeçar.


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