1. Há galerias estranhas nesta cidade.
2. E não me refiro ao luxo inviável em meio à decomposição do centro de uma Galeria Pacífico, de um Pátio Bullrich. São as mais modestas e anônimas, espalhadas pelos bairros, as que me espantam, verdadeiros museus de como se compravam e se vendiam as coisas em outra civilização. Lembram as antigas galerias do centro Porto Alegre, de São Paulo, do Rio (que ainda devem estar lá), com sua inusitada mistura de pastelarias, floriculturas, oficinas de relojoaria e balcões de negócios indecifráveis. Pelos corredores, vão curiosos tipos. Parecem, de algum modo, bonecos de cera: cabelos, roupas e bigodes arranjados à maneira dos anos 1970. Têm, de fato, inclusive, as cores das fotografias kodak dessa época, muito marrom e muito violeta, prestes a se dissolverem em um alaranjado esquecimento.
3. Mas há, sobretudo, lojas ainda mais estranhas nas ruas dos tantos Palermos.
4. No ritmo atual, crê-se que até 2056 a Capital Federal estará totalmente apalermada. Enfim. São nesses lugares turísticos que as lojas sem produtos se proliferam. Em geral possuem fachadas de vidro, ornadas por algum letreiro de design norueguês, com nomes difusos como Vibe, Simple, Fuse. Dentro delas, figuras esguias, descontraídas, circulam em ambientes minimalistas, desprovidos de mercadorias, o que me leva a supor que devam vender o privilégio de participar de uma experiência contemporânea que, fluida e onerosamente, escoa de nada para lugar nenhum.
5. Mas entre aquelas galerias escuras e estas tendas luminosas, há a loja do Jorge.
6. Há anos eu buscava uma máquina de escrever com três características difíceis de encontrar, e não apenas em uma máquina, mas em quase tudo na vida: portabilidade, funcionalidade e beleza, sendo esta última o bem mais inegociável.
7. Tive três máquinas nos últimos anos e cada qual falhava em um dos quesitos, ou até mesmo em dois. Funcionavam, mas eram feias. Funcionavam, mas pesavam uma tonelada. Eram bonitinhas, mas ordinárias.
8. Até que, num dia em fomos atrás de uns vistos de permanência no coração do centro, na Avenida Córdoba, topamos com a loja do Jorge, uma loja de máquinas de escrever. Todas em pleno funcionamento, todas belas, para os mais variados caprichos dos fregueses. A Tainá se encantou por uma portátil, daquelas com carenagem colorida de plástico rígido. Eu, ao primeiro olhar para a vitrine, encontrei a que eu sempre buscara: de ferro, preta, com as teclas redondas, uma Continental, em estado de nova, com um preçaço. Mas quem disse que era possível encontrar a loja aberta? Estava fechada naquele dia e também nas próximas duas vezes em que ali passamos, em pleno horário comercial. Na terceira vez, notei que havia um número num pequeno cartaz, com uma explicação difusa sobre os horários. Qualquer coisa, dizia, chame o Jorge, neste número.
9. Adicionei-o no whats. Apareceu-me a foto de um sujeito corado, com um bigode de Leôncio do Pica-Pau. Na mão, uma caneca descomunal de chope. Respondeu-me em capitais — como só um tiozão faria —, estaria na loja à tarde, naquele mesmo dia, mas que eu aproveitasse, pois na manhã seguinte voaria a Nova Iorque para um encontro internacional de colecionadores de máquinas de escrever. Naquela mesma tarde comprei a máquina, não sem antes compartilhar da alegria dele e do sócio ao me vendê-la, os dois levando uma eternidade para encontrar a caixa portátil mais adequada para ela, ao fim uma que tinha o interior todo em veludo bordô.
10. Porque esses dois senhores sabem: não se pode viver a lo grande sem beleza.
11. Disseram-nos que abriam a loja quando tinham vontade, que estavam os dois aposentados e que esperavam por clientes como nós, que apreciassem o que eles tinham a oferecer.
12. Liguei em seguida para meu amigo Felipe Pimentel e lhe disse que já tinha um plano para nossa aposentadoria: Abrir uma loja de coisas que quiséssemos muito, para vender somente aos que também as quisessem assim. Com horários caprichosos de abertura, e, acima de tudo, com o dever de sermos altamente idiossincráticos quanto à clientela: nosso amigo Eduardo Wolf, por exemplo, reclamão e dado a achaques, jamais poderia entrar.
13. O que venderemos? Daremos tempo para o tempo decidir. Se até lá nada nos ocorrer, abrimos o negócio em Palermo.